A tradução não se esgota. Um escritor como criador tem bloqueios, mas um tradutor não. A tradução tem algo daquelas tarefas tipicamente femininas como estender a roupa – começa e acaba ali. Por outro lado, a tradução é uma actividade de escrita e de leitura intensa – favorece uma leitura extremamente atenta e um estado de espírito de veículo, daquele que transporta de um lado para o outro. A tradução, ao contrário da obra, é efémera. E é a maneira mais actual de ler uma obra. […] A escrita é uma forma de tocar os outros. E a tradução é uma forma mais livre e feliz de exercer a escrita – contraria essa rigidez, essa obsessão. A tradução é um trabalho de torcer – ninguém quer estar a quebrar nada. É a diferença entre um universo e um satélite. Eu gosto muito da ideia do secundário, do lateral, do menor. Os satélites andam à volta, não são responsáveis por todo o universo. A tradução é um pouco isto. Gosto muito de pensar o intérprete, o tradutor, como um instrumento que não tem direito a um solo, mas sem o qual não existe orquestra.
Margarida Vale de Gato, escritora e tradutora, jornal Público