A geografia é sempre imaginária. E se bem que estou a caminhar por Buenos Aires, não estou a caminhar por aquela rua tal como ela é hoje, mas como a senti quando era adolescente.
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Todos temos essa experiência, de desembalar coisas e encontrar-nos com quem um dia fomos quando tivemos esses encontros. Ao mesmo tempo, sou consciente de que a memória é um acto criativo e não documental. Por isso, ao dizer que me lembro do dia em que descobri um livro e o li pela primeira vez, estou a inventar uma recordação sobre outra antes inventada. As recordações são palimpsestos que não nos permitem alcançar a memória original nem saber quão longe estamos dela. [No caso dos livros] são a corporalidade da memória. O livro em si mesmo é um objecto inerte – papel, tinta, cola. Mas é através dele que as recordações começam a surgir, como um acto mágico em que se utiliza um talismã para convocar os espíritos. E aparece sempre um espírito diferente, um fantasma inesperado de que não nos lembrávamos ou que estava lá e nem o sabíamos.
Alberto Manguel, escritor, revista do semanário Expresso